terça-feira, 20 de novembro de 2012
quarta-feira, 14 de novembro de 2012
Sobre cabras e antas
O texto do deputado, uma resposta ao petardo homofóbico de autoria do jornalista José Roberto Guzzo e publicado naquela revista conhecida como detrito de maré baixa, fala por si. É contundente. E contribui para arrancar e atirar ao longe as máscaras da hipocrisia e do preconceito, que muita gente ainda teima em mantê-las sobre suas faces.
Sobre cabras e antas
Por Jean Wyllys*
Eu havia prometido não responder à coluna do ex-diretor de redação de Veja, José Roberto Guzzo, para não ampliar a voz dos imbecis. Mas foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos, que eu dominei meu asco e decidi responder.
Sobre cabras e antas
Por Jean Wyllys*
Eu havia prometido não responder à coluna do ex-diretor de redação de Veja, José Roberto Guzzo, para não ampliar a voz dos imbecis. Mas foram tantos os pedidos, tão sinceros, tão sentidos, que eu dominei meu asco e decidi responder.
A coluna publicada na edição desta semana do libelo
da editora Abril — e que trata sobre o relacionamento dele com uma cabra e sua
rejeição ao espinafre, e usa esses exemplos de sua vida pessoal como desculpa
para injuriar os homossexuais — é um monumento à ignorância, ao mau gosto e ao
preconceito.
Logo no início, Guzzo usa o termo “homossexualismo”
e se refere à nossa orientação sexual como “estilo de vida gay”. Com relação ao
primeiro, é necessário esclarecer que as orientações sexuais (seja você hétero,
lésbica, gay ou bi) não são tendências ideológicas ou políticas nem doenças, de
modo que não tem “ismo” nenhum. São orientações da sexualidade, por isso se
fala em “homossexualidade”, “heterossexualidade” e “bissexualidade”. Não é uma
opção, como alguns acreditam por falta de informação: ninguém escolhe ser homo,
hétero ou bi.
O uso do sufixo “ismo”, por Guzzo, é, portanto,
proposital: os homofóbicos o empregam para associar a homossexualidade à ideia
de algo que pode passar de uns a outros – “contagioso” como uma doença – ou para
reforçar o equívoco de que se trata de uma “opção” de vida ou de pensamento da
qual se pode fazer proselitismo.
Não se trata de burrice da parte do colunista
portanto, mas de má fé. Se fosse só burrice, bastaria informar a Guzzo que a
orientação sexual é constitutiva da subjetividade de cada um/a e que esta não
muda (Gosta-se de homem ou de mulher desde sempre e se continua gostando); e
que não há um “estilo de vida gay” da mesma maneira que não há um “estilo de
vida hétero”.
A má fé conjugada de desonestidade intelectual não
permitiu ao colunista sequer ponderar que heterossexuais e homossexuais
partilham alguns estilos de vida que nada têm a ver com suas orientações
sexuais! Aliás, esse deslize lógico só não é mais constrangedor do que sua
afirmação de que não se pode falar em comunidade gay e que o movimento gay não
existe porque os homossexuais são distintos. E o movimento negro? E o movimento
de mulheres? Todos os negros e todas as mulheres são iguais, fabricados em
série?
A comunidade LGBT existe em sua dispersão, composta
de indivíduos que são diferentes entre si, que têm diferentes caracteres
físicos, estilos de vida, ideias, convicções religiosas ou políticas,
ocupações, profissões, aspirações na vida, times de futebol e preferências
artísticas, mas que partilham um sentimento de pertencer a um grupo cuja base
de identificação é ser vítima da injúria, da difamação e da negação de
direitos! Negar que haja uma comunidade LGBT é ignorar os fatos ou a inscrição
das relações afetivas, culturais, econômicas e políticas dos LGBTs nas
topografias das cidades. Mesmo com nossas diferenças, partilhamos um sentimento
de identificação que se materializa em espaços e representações comuns a todos.
E é desse sentimento que nasce, em muitos (mas não em todas e todos,
infelizmente) a vontade de agir politicamente em nome do coletivo; é dele que
nasce o movimento LGBT. O movimento negro — também oriundo de uma comunidade
dispersa que, ao mesmo tempo, partilha um sentimento de pertença — existe pela
mesma razão que o movimento LGBT: porque há preconceitos a serem derrubados,
injustiças e violências específicas contra as quais lutar e direitos a
conquistar.
A luta do movimento LGBT pelo casamento civil
igualitário é semelhante à que os negros tiveram que travar nos EUA para
derrubar a interdição do casamento interracial, proibido até meados do século
XX. E essa proibição era justificada com argumentos muito semelhantes aos que
Guzzo usa contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Afirma o colunista de Veja que nós os e as
homossexuais queremos “ser tratados como uma categoria diferente de cidadãos,
merecedora de mais e mais direitos”, e pouco depois ele coloca como exemplo a
luta pelo casamento civil igualitário. Ora, quando nós, gays e lésbicas,
lutamos pelo direito ao casamento civil, o que estamos reclamando é,
justamente, não sermos mais tratados como uma categoria diferente de cidadãos,
mas igual aos outros cidadãos e cidadãs, com os mesmos direitos, nem mais nem
menos. É tão simples! Guzzo diz que “o casamento, por lei, é a união entre um
homem e uma mulher; não pode ser outra coisa”. Ora, mas é a lei que queremos
mudar! Por lei, a escravidão de negros foi legal e o voto feminino foi
proibido. Mas, felizmente, a sociedade avança e as leis mudam. O casamento
entre pessoas do mesmo sexo já é legal em muitos países onde antes não era. E
vamos conquistar também no Brasil!
Os argumentos de Guzzo contra o casamento
igualitário seriam uma confissão pública de estupidez se não fosse uma peça de
má fé e desonestidade intelectual a serviço do reacionarismo da revista. Ele
afirma: “Um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até
ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar”. Eu não sei que tipo de
relação estável o senhor Guzzo tem com a sua cabra, mas duvido que alguém possa
ter, com uma cabra, o tipo de relação que é possível ter com um cabra — como
Riobaldo, o cabra macho que se apaixonou por Diadorim, que ele julgava ser um
homem, no romance monumental de Guimarães Rosa. O que ele, Guzzo, chama de
“relacionamento” com sua cabra é uma fantasia, pois falta o intersubjetivo, a
reciprocidade que, no amor e no sexo, só é possível com outro ser humano
adulto: duvido que a cabra dele entenda o que ele porventura faz com ela como
um “relacionamento”.
Guzzo também argumenta que “se alguém diz que não
gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei,
afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou
de seja lá o que for”. Bom, nós, os gays e lésbicas, somos como o espinafre ou
como as cabras. Esse é o nível do debate que a Veja propõe aos seus leitores.
Não, senhor Guzzo, a lei não pode obrigar ninguém a
“gostar” de gays, lésbicas, negros, judeus, nordestinos, travestis, imigrantes
ou cristãos. E ninguém propõe que essa obrigação exista. Pode-se gostar ou não
gostar de quem quiser na sua intimidade (De cabra, inclusive, caro Guzzo, por
mais estranho que seu gosto me pareça!). Mas não se pode injuriar, ofender,
agredir, exercer violência, privar de direitos. É disso que se trata.
O colunista, em sua desonestidade intelectual,
também apela para uma comparação descabida: “Pelos últimos números disponíveis,
entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num
país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece claro que o problema não
é a violência contra os gays; é a violência contra todos”. O que Guzzo não diz,
de propósito (porque se trata de enganar os incautos), é que esses 300
homossexuais foram assassinados por sua orientação sexual! Essas estatísticas
não incluem os gays mortos em assaltos, tiroteios, sequestros, acidentes de
carro ou pela violência do tráfico, das milícias ou da polícia.
As estatísticas se referem aos LGBTs assassinados
exclusivamente por conta de sua orientação sexual e/ou identidade de gênero!
Negar isso é o mesmo que negar a violência racista que só se abate sobre
pessoas de pele preta, como as humilhações em operações policiais, os
“convites” a se dirigirem a elevadores de serviço e as mortes em “autos de resistência”.
Qual seria a reação de todas e todos nós se Veja
tivesse publicado uma coluna em que comparasse negros e negras com cabras e
judeus com espinafre? Eu não espero pelo dia em que os homens e mulheres
concordem, mas tenho esperança de que esteja cada vez mais perto o dia em que
as pessoas lerão colunas como a de Guzzo e dirão “veja que lixo!”.
*Jean Wyllys é Deputado
Federal (PSOL-RJ)
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