quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

O que está acontecendo no Mali?

De forma bem humorada, porém, com sinceridade nas palavras, Tomás Rosa Bueno expõe os interesses que se escondem por trás da intervenção de tropas francesas no Mali, país africano até então desconhecido no cenário político internacional. Vale a leitura. E a propagação.


Por Tomás Rosa Bueno
A rebelião tuaregue sempre existiu e, nas suas terras, eles sempre conduziram os seus negócios mais ou menos como bem entenderam, independentemente de quem estivesse no poder em Bamako ou em qualquer outra capital das terras que frequentam. Fazendo de Timbuctu uma espécie de eixo cultural e de comunicações, levavam a mesma vida nômade de sempre, desde que se instalaram na região no final do século XV, pastoreando e comerciando e, depois de traçadas as fronteiras artificiais dos séculos XIX e XX, contrabandeando armas e outros produtos mais ou menos ilícitos através dessas linhas que para eles não tinham o menor sentido: a "nação azawad" estende-se do Sahara Ocidental e do sul do Marrocos ao oeste do Sudão, do outro lado do continente africano, numa vasta faixa que cobre o sul da Argélia, o norte do Mali, o norte do Níger e o sul da Líbia, o noroeste do Sudão e o sudoeste do Egito.
Neste vasto território, os pouco mais de um milhão de tuaregues sempre foram senhores absolutos, frouxamente governados por sete grandes federações, os Kel, cuja principal função é a administração de justiça e a arbitragem de conflitos, seguindo uma espécie diluída de Islã em uma sociedade de base matrilinear em que as mulheres lêem e escrevem e os homens não, os homens usam véu e as mulheres não; e na qual o gado, principal "capital" tuaregue, e outros bens móveis como tendas a apetrechos domésticos são de propriedade das mulheres e transmitidos de mãe para filha.
Na medida do possível hoje em dia, um povo livre, vivendo em terras que ninguém queria. Daí, duas grandes desgraças se abateram sobre eles nas últimas décadas: o Gaddafi e os recursos minerais. Ou talvez as duas sejam faces da mesma moeda. O Gaddafi imaginou e planejou - e em grande parte conseguiu - tornar-se um líder da causa tuaregue em todo o território azawad. Armou e privilegiou tuaregues importados (enquanto tratava os berberes líbios a pão e água) e fez deles parte da sua guarda pessoal. Financiou movimentos autonomistas nos países de forte presença tuaregue, deu asilo a líderes tuaregues perseguidos e, dizem, entregou aos "seus" tuaregues uma fortuna em ouro e armas antes da derrocada final.
Ao mesmo tempo, vários concorrentes internacionais disputavam o controle das ricas jazidas minerais do sul do Sahara, financiando outros e às vezes os mesmos movimentos que o Gaddafi e dando apoio político internacional às fracassadas revoltas tuaregues de 1992 a 2007. Neste caso, é preciso que fique bem claro, os vários movimentos em prol da "nação tuaregue" não são movimentos nacionais típicos que, entre outras reivindicações, tratam de recuperar os recursos naturais de uma região para benefício dos seus habitantes, mas de agrupamentos que disputam a "honra" de negociar a sua entrega a interesses forâneos -- quem vai receber a Areva ou a Shell, a claque corrupta de Bamako ou Nianmey ou os pretendentes a claque corrupta de Timbuctu e Gao ou de Arlit e Agadez -- e de quais interesses forâneos se apropriariam deles, os franceses ou os ingleses e holandeses.
Depois da derrocada líbia, como era de esperar (embora todos os "especialistas" dissessem então que isto era "especulação alarmista"), os "tuaregues do Gaddafi" voltaram às suas regiões de origem, principalmente ao norte do Níger e do Mali. Ali, principalmente no Mali, com o armamento e o dinheiro levados da Líbia, deram um novo ânimo a lideranças que já se contentavam em negociar cargos na administração regional com Bamako; e, ressuscitando o antigo Movimento Nacional Azawad, desta vez agregando-lhe um L de "libertação", fundaram o Movimento Nacional de Libertação de Azawad e reiniciaram a insurreição interrompida em 2007, desta vez com forte apoio dos jihadis líbios e de todas as partes, em primeiro lugar contra os próprios tuaregues, minimamente interessados em ter o seu próprio Estado.
A revolta alastrou-se com rapidez e ocupou praticamente todo o norte do Mali, mas logo começou a dar chabu. O MNLA, que por um momento até achou que pudesse fazer uma aliança tática com os jihadis, logo se deu conta do erro e rompeu a aliança, passando a combatê-los em todas as frentes, retirando-se de várias cidades ocupadas e abandonando os fundamentalistas à própria sorte e forçando-os a retirarem-se de outras -- e também sendo forçados a retirar-se, por exemplo, de Gao, suposta capital do novo país, em junho do ano passado.
No fim de novembro, todas as principais cidades do norte do Mali estavam em mãos de islamistas, grande parte deles importados de outros países muçulmanos, e o MNLA, embora militarmente muito mais forte, preferiu retirar-se para as suas bases tradicionais com as suas forças intactas, ao mesmo tempo em que tomava distância em relação às reivindicações independentistas. Enquanto isto, o principal grupo islamista, o Ansar al-Dine (Defensores da Fé), anunciou a suspensão da aplicação da charia nos territórios que controla, distanciou-se da AQIM (Al-Qaida no Maghreb Islâmico) e de outros grupelhos afins e abriu negociações de paz com Bamako.
Ou seja, a guerra acabou. Na ausência de um Estado efetivo no Mali, o atual status quo era a melhor garantia de manutenção da ordem e da integridade territorial do país. Neste cenário, a intervenção francesa fede a hipocrisia e oportunismo. Com a desculpa de combater os jihadis, que efetivamente não têm poder algum no Mali nem podem ser combatidos por forças militares convencionais, e depois de declararem que "o inimigo não são os tuaregues do MNLA nem o Ansar al-Dine", os franceses bombardeiam posições de ambos em Gao e em Menaka -- e não chegam nem perto de combater os islamistas radicais.
Os únicos objetivos da intervenção são mostrar quem manda e aproveitar o caos para afastar a concorrência -- não quando era arriscado e tanto o Ansar al-Dine como o MNLA estavam mobilizados e podiam revidar à altura, mas agora, que podem brincar de guerra de videogame e exibir os Rafales em ação. Tomara que os tuaregues derrubem uns dois ou três Rafales, para acabar com o test-drive, arruinar o negócio e azedar a alegria dos galo-mascates.

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