Por Tomás Rosa Bueno
A rebelião tuaregue sempre existiu e, nas suas terras,
eles sempre conduziram os seus negócios mais ou menos como bem entenderam,
independentemente de quem estivesse no poder em Bamako ou em qualquer outra
capital das terras que frequentam. Fazendo de Timbuctu uma espécie de eixo
cultural e de comunicações, levavam a mesma vida nômade de sempre, desde que se
instalaram na região no final do século XV, pastoreando e comerciando e, depois
de traçadas as fronteiras artificiais dos séculos XIX e XX, contrabandeando
armas e outros produtos mais ou menos ilícitos através dessas linhas que para
eles não tinham o menor sentido: a "nação azawad" estende-se do
Sahara Ocidental e do sul do Marrocos ao oeste do Sudão, do outro lado do
continente africano, numa vasta faixa que cobre o sul da Argélia, o norte do
Mali, o norte do Níger e o sul da Líbia, o noroeste do Sudão e o sudoeste do
Egito.
Neste vasto território, os pouco mais de um milhão de
tuaregues sempre foram senhores absolutos, frouxamente governados por sete grandes
federações, os Kel, cuja principal função é a administração de justiça e a
arbitragem de conflitos, seguindo uma espécie diluída de Islã em uma sociedade
de base matrilinear em que as mulheres lêem e escrevem e os homens não, os
homens usam véu e as mulheres não; e na qual o gado, principal
"capital" tuaregue, e outros bens móveis como tendas a apetrechos
domésticos são de propriedade das mulheres e transmitidos de mãe para filha.
Na medida do possível hoje em dia, um povo livre, vivendo
em terras que ninguém queria. Daí, duas grandes desgraças se abateram sobre
eles nas últimas décadas: o Gaddafi e os recursos minerais. Ou talvez as duas
sejam faces da mesma moeda. O Gaddafi imaginou e planejou - e em grande parte
conseguiu - tornar-se um líder da causa tuaregue em todo o território azawad.
Armou e privilegiou tuaregues importados (enquanto tratava os berberes
líbios a pão e água) e fez deles parte da sua guarda pessoal. Financiou
movimentos autonomistas nos países de forte presença tuaregue, deu asilo a
líderes tuaregues perseguidos e, dizem, entregou aos "seus" tuaregues
uma fortuna em ouro e armas antes da derrocada final.
Ao mesmo tempo, vários concorrentes internacionais
disputavam o controle das ricas jazidas minerais do sul do Sahara, financiando
outros e às vezes os mesmos movimentos que o Gaddafi e dando apoio político
internacional às fracassadas revoltas tuaregues de 1992 a 2007. Neste caso, é
preciso que fique bem claro, os vários movimentos em prol da "nação
tuaregue" não são movimentos nacionais típicos que, entre outras
reivindicações, tratam de recuperar os recursos naturais de uma região para
benefício dos seus habitantes, mas de agrupamentos que disputam a
"honra" de negociar a sua entrega a interesses forâneos -- quem vai
receber a Areva ou a Shell, a claque corrupta de Bamako ou Nianmey ou os
pretendentes a claque corrupta de Timbuctu e Gao ou de Arlit e Agadez -- e de
quais interesses forâneos se apropriariam deles, os franceses ou os ingleses e
holandeses.
Depois da derrocada líbia, como era de esperar (embora
todos os "especialistas" dissessem então que isto era
"especulação alarmista"), os "tuaregues do Gaddafi"
voltaram às suas regiões de origem, principalmente ao norte do Níger e do Mali.
Ali, principalmente no Mali, com o armamento e o dinheiro levados da Líbia,
deram um novo ânimo a lideranças que já se contentavam em negociar cargos na
administração regional com Bamako; e, ressuscitando o antigo Movimento Nacional
Azawad, desta vez agregando-lhe um L de "libertação", fundaram o
Movimento Nacional de Libertação de Azawad e reiniciaram a insurreição
interrompida em 2007, desta vez com forte apoio dos jihadis líbios e de todas
as partes, em primeiro lugar contra os próprios tuaregues, minimamente
interessados em ter o seu próprio Estado.
A revolta alastrou-se com rapidez e ocupou praticamente
todo o norte do Mali, mas logo começou a dar chabu. O MNLA, que por um momento
até achou que pudesse fazer uma aliança tática com os jihadis, logo se deu
conta do erro e rompeu a aliança, passando a combatê-los em todas as frentes,
retirando-se de várias cidades ocupadas e abandonando os fundamentalistas à
própria sorte e forçando-os a retirarem-se de outras -- e também sendo forçados
a retirar-se, por exemplo, de Gao, suposta capital do novo país, em junho do
ano passado.
No fim de novembro, todas as principais cidades do norte
do Mali estavam em mãos de islamistas, grande parte deles importados de outros
países muçulmanos, e o MNLA, embora militarmente muito mais forte, preferiu
retirar-se para as suas bases tradicionais com as suas forças intactas, ao
mesmo tempo em que tomava distância em relação às reivindicações
independentistas. Enquanto isto, o principal grupo islamista, o Ansar al-Dine
(Defensores da Fé), anunciou a suspensão da aplicação da charia nos territórios
que controla, distanciou-se da AQIM (Al-Qaida no Maghreb Islâmico) e de outros
grupelhos afins e abriu negociações de paz com Bamako.
Ou seja, a guerra acabou. Na ausência de um Estado
efetivo no Mali, o atual status quo era a melhor garantia de
manutenção da ordem e da integridade territorial do país. Neste cenário, a
intervenção francesa fede a hipocrisia e oportunismo. Com a desculpa de
combater os jihadis, que efetivamente não têm poder algum no Mali nem podem ser
combatidos por forças militares convencionais, e depois de declararem que
"o inimigo não são os tuaregues do MNLA nem o Ansar al-Dine", os
franceses bombardeiam posições de ambos em Gao e em Menaka -- e não chegam nem
perto de combater os islamistas radicais.
Os únicos objetivos da intervenção são mostrar quem manda
e aproveitar o caos para afastar a concorrência -- não quando era arriscado e
tanto o Ansar al-Dine como o MNLA estavam mobilizados e podiam revidar à
altura, mas agora, que podem brincar de guerra de videogame e exibir os Rafales
em ação. Tomara que os tuaregues derrubem uns dois ou três Rafales, para acabar
com o test-drive, arruinar o negócio e azedar a alegria dos galo-mascates.
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